“O diálogo é um exercício Democrático
dos mais raros ultimamente”
Após um ano no cargo, a vereadora Áurea Carolina, a
mais votada em Belo Horizonte, defende a aproximação dos antagonistas.
"Não se constrói a luta se aniquilando".
Áurea Carolina: mulher e negra, ela foi a mais votada na capital
mineira, quebrando paradigmas da política brasileira
Em 2016, uma peça publicitária para disputar vagas na Câmara
Municipal de Belo Horizonte chamou atenção. Em um mesmo vídeo, diversas
candidaturas se apresentavam. Áurea Carolina era primeira e abria a peça
dizendo: “Eu sou Áurea Carolina, candidata a vereadora. Mas se você não quiser
votar em mim, vote na Polly”. Polly então aparecia afirmando “A Cristal também
tem propostas ótimas, vote nela”. E víamos Cristal surgir para defender a
eleição de Marimar e sucessivamente. Uma reforçando a candidatura da outra.
O
ineditismo de uma campanha coletiva rendeu frutos: a cientista política Áurea
Carolina (PSOL), com um discurso marcadamente feminista e antirracista, foi a
candidata mais votada da cidade. A atriz e diretora Cida Fabella também se
elegeu pela legenda e, juntas, elas fundaram a “Gabinetona”, um espaço de
atuação comum.
Além desta, outras medidas
bastante inovadoras foram criadas, como um grupo de teatro, “As Diferentonas”,
e os “labpops”, laboratórios populares de leis. Passado um ano do pleito, Áurea
faz, nesta entrevista, um balanço sobre a viabilidade das propostas e o impacto
delas em um cenário de tanta descrença na política.
Carta Capital: Depois dos primeiros meses de mandato, como
você tem visto a diferença entre a proposta de um mandato coletivo e a
possibilidade de implementá-la na Câmara Municipal?
Áurea
Carolina: O que faz o mandato ser coletivo são as nossas práticas, que
trazem a nossa agenda de transformação, envolvendo as diversas lutas da
construção da campanha. A busca de horizontalidade, um princípio e desafio
permanente, é o que permite construir relações de confiança e fortalecer o
vínculo entre nós. Isso é muito importante porque o mandato é uma organização
nova.
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Acho que não tínhamos a
dimensão disso. E acaba sendo um refúgio para suportarmos, dentro da
instituição, esse desejo da experimentação de uma política que seja
radicalmente democrática, como anunciamos na campanha. Não tem ponto de
chegada, todo dia é bem exigente. E quanto mais a gente tenta criar processos
para agir com sinceridade, com transparência entre nós mesmas, conseguimos
comunicar isso para a cidade também.
Os espaços de participação que
nos propomos a inventar é que são o chão nosso de realização daquilo que nós
falamos que buscávamos na campanha.
CC: E que espaços são esses? O que têm dado certo?
AC: Acabamos
de estrear um grupo de teatro e educação popular, o “As Diferentonas”. É um
recurso importante, criativo, de mobilização, de conversa direta com as
pessoas, de conexão do mandato com outras frentes. Outro experimento: criamos
um pensamento de mandato aberto. São duas instâncias de participação do
mandato, que são laboratórios populares de leis (labpop) e grupos
fortalecedores (Geforte). Os “labpop” são para formulação de proposições
legislativas.
Até agora só funcionaram para
emendar projetos que já estavam tramitando, mas desejamos que sirvam para a
criação de projetos de lei próprios do mandato. Queremos fazer uma lei de
cultura viva, por exemplo. É algo para aprimorarmos metodologicamente e
sentirmos como as pessoas se engajam ou não porque tem uma questão de tradução
para a linguagem técnica-institucional a partir da elaboração das comunidades e
movimentos.
Os “Gefortes” são espaços de
formulação de diretrizes políticas mais amplas. Criamos um, por exemplo, com
trabalhadoras na rua, ambulantes e camelôs. Foi esse grupo fortalecedor que nos
orientou contra a retirada de camelôs do Hiper Centro que a gestão [Alexandre]
Kalil acabou de fazer. Uma política higienista, racista, um processo muito
truculento.
Com os trabalhadores,
entendemos como eles queriam pensar outros caminhos, de feiras permanentes em
espaços públicos. Nós não tiramos isso da nossa cabeça porque nem tínhamos
repertório para isso. Tem outras coisas que estamos inventando lá, mas o
principal é que o mandato é um grande laboratório em pequena escala. A própria
organização interna, os núcleos de trabalho, a “Gabinetona”, que é nossa área
comum.
Temos um processo permanente de
reflexão, de reuniões dos núcleos de trabalho, de reunião das pessoas da
equipe. Temos 41 pessoas na equipe: nós somos 25 mulheres, 24 pessoas negras,
15 LGBTs, uma mulher indígena, 4 moradoras de ocupações urbanas. Não é só para
dizer da presença dessas diferenças na equipe, mas para dizer que essas agendas
são estruturantes das nossas práticas também. Então é um mandato feminista,
antirracista, da quebrada.
CC: E essas pessoas trazem ideias diferentes também...
AC: Sim.
Tentamos lidar com essas diferenças não no tensionamento mais convencional
porque as esquerdas têm uma memória muito bélica, de competição, de inimigos.
Isso pode fazer sentido em alguns contextos, mas em geral, em nossa
autoconstrução, é muito destrutivo.
Então precisamos pensar em
outras maneiras. Falamos em uma política de amor, mas não para cair num
sentimentalismo. A convivência é o que produz em nós a possibilidade de
confiança e isso é matriz para construir a luta popular. A gente não constrói a
luta desconfiando, se maltratando, se aniquilando. Ninguém suporta ficar muito
tempo na luta assim. As pessoas vão adoecendo. Precisamos pegar fôlego para ter
um novo ciclo de lutas e, se não houver esse cuidado, não vai dar.
As diferenças precisam se
encontrar e estar juntas. Porque a convivência é algo que nos educa ou nos
maltrata completamente. Nos educa para estarmos em respeito mútuo nessa sociedade.
O diálogo é um exercício democrático dos mais raros ultimamente.
CC: Pode dar um exemplo?
AC: Fizemos
recentemente um seminário sobre segurança pública cidadã pela Comissão Especial
sobre o Genocídio da Juventude Negra e foi um exemplo: conseguimos trazer
jovens que estão cumprindo medida socioeducativa, guarda municipal de Belo
Horizonte, um capitão da Polícia Militar, trabalhadoras de várias áreas da
Prefeitura, ativistas, colegas vereadores, e é muito raro ver tanta diversidade
assim num mesmo espaço, em especial para trocar ideias sobre um tema que
raramente tem mediações. É um tema que é “bandido bom é bandido morto” ou “fim
da Polícia Militar”.
Há uma costura de aproximações
que precisamos fazer intencionalmente. Fizemos lá a primeira cena das Diferentonas,
de Teatro do Oprimido, preparada para o seminário. Em determinado momento, os
guardas municipais disseram “nós queremos entrar nessa cena”. Era uma abordagem
truculenta da polícia com um menor e uma mãe na rua. Só que Teatro do Oprimido
não se pode substituir o opressor. A ideia é que a pessoa oprimida seja
substituída para que se crie uma saída para aquela situação.
Cida e
Áurea na Câmara. Um novo jeito de legislar (Foto: Abraão Bruck / CMBH)
E aí os guardas falaram: “Não, nós queremos mostrar de outro jeito essa
abordagem”. Rolou um pequeno impasse, porque não se poderia substituir o
opressor, mas aí a Cida, que é vereadora e diretora de teatro, disse para
tentarmos. E foi muito importante porque os guardas fizeram uma cena
praticamente igual à que estava sendo representada antes. Acho que eles não
conseguiram perceber que eles estavam indo no mesmo caminho.
Mas essa foi a senha para eles toparem depois entrar como oprimido.
Então, com um certo tensionamento, nós conseguimos contornar. A partir do
encontro da arte com esse real. Se não for por aí, como convencer um guarda
municipal, que disse que ele, como negro, sofreu muito, mas que se esforçou e
conseguiu estar lá e que qualquer pessoa negra que se esforçar consegue, se não
for por meio da sensível? Para entender que o racismo está para além de algo
pessoal para conseguir as coisas? Eu venho da educação popular, com a
juventude, e eu acho que a política democrática é um grande processo de
educação popular.
CC: E como você vê o cenário
da política institucional hoje?
AC: Acho que devemos reconstruir o campo das lutas populares e, mais
do que nunca, precisamos ter um esforço de confluência – que é muito caro para
nós. O mandato é um espaço de confluência de forças. Não só porque as forças em
cada um são insuficientes, são incompletas, são precárias, mas porque atuar em
cooperação é uma maneira de cada um trazer uma perspectiva, uma contribuição.
Se interconectamos tudo, potencializa.
Mas também por uma questão estratégica, de sobrevivência. Até quando os
grupos do campo da esquerda vão ficar se maltratando? Nesse cenário, não são só
“eles” e “a gente”: tem muito eles dentro da gente também.
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Precisamos ter essa compreensão histórica da transição de um ciclo, do
encerramento de uma temporada de atuação com o projeto democrático-popular, e
fazermos uma análise em cima do que nós conseguimos avançar até aqui, dos
custos altíssimos que pagamos até aqui e do que precisamos lançar para o
próximo período. Abrir mão das instituições é um erro. O golpe é exatamente a
tentativa da eliminação completa da nossa presença nas instituições – no
Judiciário, no Legislativo, no Executivo, na mídia, na própria cultura, no
imaginário.
CC: Por quê?
AC: Abrir mão das instituições, achar que só no processo auto-organizado,
autônomo, vamos fazer a passagem, é talvez viver um ciclo ainda mais
destrutivo, de perdas sociais, de matança, de miséria para a maioria das
pessoas. É uma responsabilidade social fazer o debate consequente sobre as
instituições. E mais: olhando para as instituições, tentamos aprender com esses
erros recentes. Não vamos fazer da ocupação institucional um fim em si.
Isso tem que ser recurso para ativar os processos autônomos e trazer de
volta deles uma influência institucional. E também de transição das pessoas e
dos grupos que ocupam os espaços de poder. Então aquele investimento clássico
de formação de lideranças do PT para ocupar as instituições e que depois
aquelas pessoas vão se consolidando e se cristalizando nas instituições, deu
errado. Deu erradaço. Nós vamos ter que ocupar já pensando que daqui a pouco eu
vou sair, que vai entrar mais gente, que vão continuar trabalhando.
CC: Você está mais otimista
ou pessimista?
AC: Eu sou muito empolgada. Acredito nos processos. Sou feliz, acordo
todos os dias e penso “gente, vou fazer um mandato”. Por outro lado, é óbvio
que o cenário dá um desalento. Mas o que me faz não perder a esperança é
acreditar que o que estamos desenvolvendo em pequena escala é a coisa certa no
sentido de justiça. Não estamos ali buscando tirar uma vantagem pessoal.
Vejo isso no grupo que está construindo conosco, mesmo com todos os
problemas e tensões que temos de tecer uma convivência. É bem difícil. Mas
cuidar disso e ajudar a inspirar outros processos talvez sejam as trilhas que
vamos ter no próximo período. Essas experiências se interconectarem. É isso que
vai dar segurança para a gente. Eu estive em Barcelona, em Guadalajara, tem um
bando de gente lá na mesma pilha. Tem muitas experiências assim.
Acho que tem uma travessia dura nos próximos anos, de acirramento da
miséria, da violência, porque o bagulho é muito brutal. Por outro lado, a gente
não está esperando acontecer alguma coisa, estamos pegando para fazer. É um
senso de que é uma responsabilidade nossa também. Por isso eu também estou
animadaça.
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