DIÁLOGO C/ZYGMUNT BAUMAN
Zygmunt Bauman, filósofo polonês, reflete sobre a individualização da
sociedade contemporânea em entrevista exclusiva concedida a Fernando Schüler e
Mário Mazzilli na Inglaterra. Democracia, laços sociais, comunidade, rede,
pós-modernidade, dentre outros tópicos analisados por uma das grandes mentes da
contemporaneidade. Conferencista do Fronteiras do Pensamento 2011.
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Bauman: “As redes sociais são uma armadilha”
Ele é a voz dos menos favorecidos. O sociólogo
denuncia a desigualdade e a queda da classe média. E avisa aos indignados que
seu experimento pode ter vida curta
Zygmunt Bauman acaba de completar 90 anos de idade e de tomar
dois voos para ir da Inglaterra ao debate do qual participa em Burgos
(Espanha). Está cansado, e admite logo ao começar a entrevista, mas se expressa
com tanta calma quanto clareza. Sempre se estende, em cada explicação, porque
detesta dar respostas simples a questões complexas.
Desde que colocou, em 1999, sua ideia da “modernidade
líquida” – uma etapa na qual tudo que era sólido se liquidificou, e em que
“nossos acordos são temporários, passageiros, válidos apenas até novo aviso” –,
Bauman se tornou uma figura de referência da sociologia. Suas denúncias sobre a crescente desigualdade, sua análise
do descrédito da política e sua visão
nada idealista do que trouxe a revolução digital o transformaram também em um
farol para o movimento global dos indignados, apesar de que não hesita em
pontuar suas debilidades.
O polonês (Poznan, 1925) era
criança quando sua família, judia, fugiu para a União Soviética para escapar do
nazismo, e, em 1968, teve que abandonar seu próprio país, desempossado de seu
posto de professor e expulso do Partido Comunista em um expurgo marcado pelo
antissemitismo após a guerra árabe-israelense. Renunciou à sua nacionalidade,
emigrou a Tel Aviv e se instalou, depois, na Universidade de Leeds
(Inglaterra), onde desenvolveu a maior parte de sua carreira. Sua obra, que
arranca nos anos 1960, foi reconhecida com prêmios como o Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades
de 2010, que recebeu junto com Alain Touraine.
Bauman é considerado um pessimista.
Seu diagnóstico da realidade em seus últimos livros é sumamente crítico. Em A riqueza de poucos beneficia
todos nós?
explica o alto preço que se paga hoje em dia pelo neoliberalismo triunfal dos
anos 80 e a “trintena opulenta” que veio em seguida. Sua conclusão: a promessa
de que a riqueza acumulada pelos que estão no topo chegaria aos que se
encontram mais abaixo é uma grande mentira.
Em Cegueira moral, escrito junto com Leonidas
Donskis, Bauman alerta sobre a perda do sentido de comunidade em um mundo
individualista. Em seu novo ensaio, Estado de crise, um diálogo com o sociólogo
italiano Carlo Bordoni, volta a se destacar. O livro da editora Zahar, que já
está disponível para pré-venda no Brasil, trata de um momento histórico de
grande incerteza.
Bauman volta a seu hotel junto com
o filósofo espanhol Javier Gomá, com quem debateu no Fórum da Cultura, evento
que terá sua segunda edição realizada em novembro e que traz a Burgos os
grandes pensadores mundiais. Bauman é um deles.
Pergunta. Você vê a desigualdade como
uma “metástase”. A democracia está em perigo?
Resposta. O que está acontecendo agora,
o que podemos chamar de crise da democracia, é o colapso da confiança. A crença
de que os líderes não só são corruptos ou estúpidos, mas também incapazes. Para
atuar, é necessário poder: ser capaz de fazer coisas; e política: a habilidade
de decidir quais são as coisas que têm ser feitas. A questão é que esse
casamento entre poder e política nas mãos do Estado-nação acabou.
O poder se globalizou, mas as
políticas são tão locais quanto antes. A política tem as mãos cortadas. As
pessoas já não acreditam no sistema democrático porque ele não cumpre suas
promessas. É o que está evidenciando, por exemplo, a crise de migração. O fenômeno
é global, mas atuamos em termos paroquianos. As instituições democráticas não
foram estruturadas para conduzir situações de interdependência. A crise
contemporânea da democracia é uma crise das instituições democráticas.
"Foi uma
catástrofe arrastar a classe média ao precária. O conflito já não é entre
classes, mas de cada um com a sociedade”
P. Para
que lado tende o pêndulo que oscila entre liberdade e segurança?
R. São
dois valores extremamente difíceis de conciliar. Para ter mais segurança é
preciso renunciar a certa liberdade, se você quer mais liberdade tem que
renunciar à segurança. Esse dilema vai continuar para sempre. Há 40 anos,
achamos que a liberdade tinha triunfado e que estávamos em meio a uma orgia
consumista.
Tudo parecia possível
mediante a concessão de crédito: se você quer uma casa, um carro... pode pagar
depois. Foi um despertar muito amargo o de 2008, quando o crédito fácil acabou.
A catástrofe que veio, o colapso social, foi para a classe média, que foi
arrastada rapidamente ao que chamamos de precária (termo
que substitui, ao mesmo tempo, proletariado e classe média).
Essa é a categoria dos
que vivem em uma precariedade contínua: não saber se suas empresas vão se
fundir ou comprar outras, ou se vão ficar desempregados, não saber se o que
custou tanto esforço lhes pertence... O conflito, o antagonismo, já não é entre
classes, mas de cada pessoa com a sociedade. Não é só uma falta de segurança,
também é uma falta de liberdade.
P. Você
afirma que a ideia de progresso é um mito. Por que, no passado, as pessoas
acreditavam em um futuro melhor e agora não?
R. Estamos
em um estado de interregno,
entre uma etapa em que tínhamos certezas e outra em que a velha forma de atuar
já não funciona. Não sabemos o que vai a substituir isso. As certezas foram
abolidas. Não sou capaz de profetizar. Estamos experimentando novas formas de
fazer coisas.
A Espanha foi um exemplo
com aquela famosa iniciativa de maio (o 15-M), em que essa gente tomou as
praças, discutindo, tratando de substituir os procedimentos parlamentares por
algum tipo de democracia direta. Isso provou ter vida curta. As políticas de
austeridade vão continuar, não podiam pará-las, mas podem ser relativamente
efetivos em introduzir novas formas de fazer as coisas.
O
sociólogo Zygmunt Bauman. SAMUEL SÁNCHEZ
P. Você
sustenta que o movimento dos indignados “sabe
como preparar o terreno, mas não como construir algo sólido”.
R. O povo esqueceu suas diferenças por um
tempo, reunido na praça por um propósito comum. Se a razão é negativa, como se
indispor com alguém, as possibilidades de êxito são mais altas. De certa forma,
foi uma explosão de solidariedade, mas as explosões são muito potentes e muito
breves.
P. E você também lamenta que, por sua
natureza “arco íris”, o movimento não possa estabelecer uma liderança sólida.
R. Os líderes são tipos duros, que têm ideias
e ideologias, o que faria desaparecer a visibilidade e a esperança de unidade.
Precisamente porque não tem líderes o movimento pode sobreviver. Mas,
precisamente porque não tem líderes não podem transformar sua unidade em uma
ação prática.
P. Na Espanha, as consequências do 15-M
chegaram à política. Novos partidos emergiram com força.
R. A mudança de um partido por outro não
vai a resolver o problema. O problema hoje não é que os partidos estejam
equivocados, e sim o fato de que não controlam os instrumentos. Os problemas
dos espanhóis não estão restritos ao território nacional, são globais. A
presunção de que se pode resolver a situação partindo de dentro é errônea.
P. Você analisa a crise do Estado-nação.
Qual é a sua opinião sobre as aspirações independentistas da Catalunha?
R. Penso que continuamos com os princípios
de Versalhes, quando se estabeleceu o direito de cada nação baseado na
autodeterminação. Mas isso, hoje, é uma ficção porque não existem territórios
homogêneos. Atualmente, todas as sociedades são uma coleção de diásporas. As
pessoas se unem a uma sociedade à qual são leais, e pagam impostos, mas, ao
mesmo tempo, não querem abrir mão de suas identidades. A conexão entre o local
e a identidade se rompeu.
A
situação na Catalunha, como na Escócia ou no Lombar dia, é uma contradição
entre a identidade tribal e a cidadania de um país. Eles são europeus, mas não
querem ir a Bruxelas por Madri, mas via Barcelona. A mesma lógica está
emergindo em quase todos os países. Mantemos os princípios estabelecidos no
final da Primeira Guerra Mundial, mas o mundo mudou muito.
P. As redes sociais mudaram a forma como
as pessoas protestam e a exigência de transparência. Você é um cético sobre
esse “ativismo de sofá” e ressalta que a Internet também nos
entorpece com entretenimento barato. Em vez de um instrumento revolucionário,
como alguns pensam, as redes sociais são o novo ópio do povo?
R. A questão da identidade foi
transformada de algo preestabelecido em uma tarefa: você tem que criar a sua
própria comunidade. Mas não se cria uma comunidade, você tem uma ou não; o que
as redes sociais podem gerar é um substituto.
A
diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à comunidade, mas a
rede pertence a você. É possível adicionar e deletar amigos, e controlar as
pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com que os indivíduos se sintam um
pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas.
Mas,
nas redes, é tão fácil adicionar e deletar amigos que as habilidades sociais
não são necessárias.
Elas
são desenvolvidas na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa
ter uma interação razoável. Aí você tem que enfrentar as dificuldades, se
envolver em um diálogo. O papa Francisco, que é um grande homem, ao ser eleito,
deu sua primeira entrevista a Eugenio Scalfari, um jornalista italiano que é um
ateu autoproclamado. Foi um sinal: o diálogo real não é falar com gente que
pensa igual a você.
As
redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a
controvérsia… Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus
horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de
conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o
único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito
úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.
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