SER OU NÃO “SER” ESPÍRITA (“PROSELITISMO”?)
Sonia Theodoro da Silva
“A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”
(Merleau-Ponty) Há tempos tenho ouvido a
seguinte frase: não devemos obrigar as pessoas à adesão espírita, pois isso é
fazer proselitismo. Em outra ocasião, alguém disse: cada criança ou jovem deve
escolher o seu caminho, afinal, Kardec disse que o Espiritismo não é
pros-elitista. Em todos esses momentos citados, com algumas
variantes, mas sempre com o mesmo sentido, sentimos que a dúvida permaneceu no
ar: afinal, o que é ser espírita? Mas o mais interessante é: o que é ser
pros-elitista? E ainda, por que a preocupação
reinante no pensamento dessas pessoas de não demonstrarem a sua “adesão” ao
Espiritismo? Em que isto estaria confrontando outras religiões, ou doutrinas,
ou crenças?
Ou será que desconhecemos o que é ser espírita de
verdade? Se lançarmos algumas
perguntas, tais como: qual o papel do espírita para consigo mesmo e a
sociedade, em que o conhecimento dos princípios espíritas poderia mudar
radicalmente o enfoque da vida das pessoas, aqui ou em qualquer outra parte do
mundo (desde que aceitos, claro); teríamos uma avalanche de “não sei muito bem,
mas... acho que …, bem, penso que…”. Pois bem, é
justamente aí que o “ser espírita” entra em questão.
Vamos por partes, muito embora as alternativas que
ofereçamos a seguir obviamente não sejam abrangentes, pois se o fossem, também
estaríamos limitando as possibilidades humanas de especularem a favor do bem
viver, conforme a bússola que a Filosofia Espírita nos oferece.
Comecemos por definir o “ser espírita” como um
movimento de transgressão, que aqui não se trata do significado de fomentar
revoltas, mas pensar e agir contra a maré do senso comum e apresentar novas
alternativas para o bem viver individual e coletivo através do conhecimento
sólido e bem estruturado de seus princípios condutores da Vida.
Por exemplo, todos sabem que a ética é uma
disciplina das atitudes, porém, nem todos tem o alcance moral desse conceito.
Jesus nô-la oferece quando diz do “amar ao próximo como a si mesmo, ” A
Filosofia Espírita naturalmente amplia esse conceito quando detalha o poder dos
efeitos sobre as causas determinantes, ou seja, pelo fato de vivermos num plano
evolutivo moral onde o determinismo se manifesta como efeito das causas morais
geradas por nós. Mas não há, então, determinismo divino? Sim, há determinismo
divino que se manifesta através das leis que repousam na consciência humana (v.
O Livro dos Espíritos, Terceira parte, Leis Divinas ou Naturais).
Quanto mais evoluído é o ser, maior será a
consciência dessas leis, é quando ele próprio se expande, independente do
espaço existencial em que se encontre, como encarnado ou desencarnado, numa
cosmovisão que abarca a realidade de uma perspectiva inédita.
Este é o condicionamento das Leis; a evolução do
Espírito. E quanto ao livre-arbítrio? Está
inserido nesse movimento de tomada de consciência dos conteúdos das leis em si,
na Inter existência, já que a liberdade faz parte desses conteúdos. Quanto à
moral, ela qualifica esse processo, conduzindo o ser para o reto caminho do
pleno Amor. Tal como Jesus disse e fez.
Isto significa que não temos alternativas, nem
poderes para evitar as consequências das más ações, pensamentos e atitudes,
atraindo para nós a intensidade do mal praticado, quando consciente, sem
remorsos ou retratação (aqui não se trata de Lei de Talião, instrumento de
contenção das leis mosaicas). Citemos como
exemplo um sentimento dos mais perniciosos e ainda vigente no coração humano; a
inveja.
A profa. Olgária Mattos, da USP (Filosofia), define
ética, hoje, como o conjunto de experiências valorativas agregadoras, ou seja,
na prática, trata-se de prudência nas ações, boas maneiras, valorar a palavra
empenhada, a boa educação. PORÉM, Em
algum momento, perdemos a capacidade de vivenciar tais valores, que são vistos
como mero formalismo e perda de autenticidade. Uma das consequências, é o
sentimento de inveja, visto como processo universalizado: o padrão “quero o que
o outro tem”, foi substituído pelo “não quero que o outro tenha. ”
Segundo a professora Olgária, ISSO PODERIA CARACTERIZAR um estado de guerra de todos
contra todos. Segundo Dorrit (in: VENTURA, Inveja, o mal secreto, pg.18), a
inveja é um sentimento inconfessável e tão insidioso que faz com que os outros
seis pecados capitais pareçam até “invejáveis”: pode-se controlar a cobiça e
acalmar a ira; seria possível sublimar a luxúria e saciar a gula; o orgulho não
chega a ser mortal e a preguiça não é um estado irreversível.
Mas a inveja, não, ela é inesgotável, sorrateira,
calculista, cumulativa, duradoura, sub-reptícia, incontrolável ou, poderemos
resumir numa só frase: um eterno descontentamento consigo mesmo. Segundo o
autor, detalhar a inveja seria penetrar no âmago dos sentimentos e emoções menores
do invejoso que vê no outro, não o seu semelhante, mas um adversário
permanente. A cobiça é competitiva.
A inveja, destrutiva. O filósofo italiano Norberto
Bobbio define a inveja como o sofrimento diante do sucesso alheio. Gore Vidal,
escritor norte-americano assim diz: “quando um de meus amigos tem sucesso,
alguma coisa em mim se apaga. ” O invejoso é um sofredor contumaz, Está sempre
atento observando as conquistas alheias e se perguntando porque ele próprio não
as consegue.
Em nossa cultura brasileira, ela foi associada ao
mau-olhado, constante da própria etimologia da palavra inveja: invidere, em
latim, tem essa conotação de olhar enviesado, de soslaio. Em outro artigo de nossa autoria, “O poder da palavra”
(in: SILVA, Sonia Theodoro, de Espiritismo, Fev. 2000, pg. 030),
personificamos o sentimento da inveja em Iago, homem de confiança de Othelo, e
que, no entanto, concorre para a sua desgraça, na impecável peça teatral de
William Shakespeare.
O espírita estaria indene a tais sentimentos
perniciosos? De forma alguma. Contudo, procurando saber de suas causas, estaria
dando um primeiro passo para a sua solução. Mas o espírita é o único a
interessar-se por essas “causas”? Mais uma vez, de maneira nenhuma.
A inveja é assunto das religiões (vide a saga de
José, no Antigo Testamento, invejado pelos próprios irmãos que tramam a sua
morte), dos consultórios de psicanálise, das ciências psicossomáticas, da
própria filosofia, da literatura, como citamos. Porém, o espírita terá um
instrumento valioso de análise comportamental, ao buscar não nesta existência,
mas na precedente, ou precedentes, as causas que motivaram ou ainda que deram
origem ao seu sofrimento atual.
Portanto, o ser espírita é muito mais do que apenas
conhecer tais sentimentos. É conhecê-los,
e tratá-los sob um ponto de vista muito mais amplo do que o dos analistas,
restritos ao momento presente. Sem
dúvida que o conhecimento espírita propiciará ao padecente de tais sentimentos
os recursos para optar por uma terapia regressiva que tente colocar um final
nessa questão, pois o sofrimento contundente– outro conceito mal compreendido –
também age como mecanismo de despertamento consciência, fazendo desabrochar as
sementes de amor que jazem latentes no interior dele próprio, e que, quando
balsamizadas pelas águas suaves de um Evangelho plenamente aceito, o premiará
com a compreensão dos exemplos magníficos de tantos missionários do Bem,
despojados da arrogante vaidade, por isso missionários. Mas
voltemos aos conceitos. Proselitismo é o mesmo que sectarismo, partidarismo,
Prosélito é aquele que, muito mais que adepto, é correligionário, partidário.
No campo das religiões dogmáticas, o proselitismo
levou, no passado, à ortodoxia, que incentivou a violência física, o banimento,
o desterro, a proscrição, condenação, a morte de livres pensadores como Pedro
Abelardo, Galileu Galilei, Copérnico, Jan Huss, Wycliffe, Lutero, Tyndale, e
centenas de outros, muitos dos quais anônimos. Tudo isto tem influência
cabal em nossa visão de mundo, já que somos herdeiros de nossa própria
história.
Aceita-se o Espiritismo mas não se alcança a sua
proposta. Esta passa a ser apenas um componente de um “compromisso
doutrinário”, como se a sua constituição fosse apenas regulamentar,
institucional, pros-elitista, nunca consciência. “Frequenta-se”
ou “trabalha-se” num centro espírita com a mesma postura dispensada à uma
igreja ou a um lugar público qualquer; preservam-se cargos, perdem-se os
conceitos sublimes da responsabilidade pelo desenvolvimento da consciência
alheia, do próximo mais próximo, aquele, que Jesus nos indicou como irmão,
irmã; aquele semelhante cuja liberdade Gandhi e Luther King defenderam com a
vida, Chico Xavier com a sua firmeza de caráter manifesta pela ternura
autêntica, Como Denis, cujo intelecto foi buscar, na periferia de Paris, almas
para educar.
Todos inspiraram e continuam inspirando seguidores,
não de suas personalidades, mas de seus conceitos de vida, de firmeza de
posição, de propósitos, de amor à Vida em seu conceito mais amplo (ainda os
conceitos). Portanto, aceitar a Filosofia
Espírita não é apenas frequentá-la, dispensando-lhe favores, como numa
obrigação consensual, É transgredir,
como dissemos antes, com o senso comum simplista, simulacro de verdade que não
se sustenta, pois tem suas bases na impermanência.
A proposta filosófico-espírita muda a visão de
mundo, o olhar cotidiano, como se mudássemos a paisagem de nossas janelas. René
Magritte pintou um quadro, cujo título é “La clef des champs” (A chave dos
campos), que ilustra este artigo. Esta é uma expressão francesa que sugere a
liberação de todo constrangimento físico e mental.
A Filosofia Espírita libertas mentes de seus
sistemas, mas muito mais que isso, transporta-as para fora das suas janelas,
para que o mundo seja visto como ele é, e as pessoas, como portadoras de suas
legítimas competências e virtudes latentes. A
Filosofia Espírita, sem fechar questões, indica-nos o caminho certo para
aprofundá-las, com o apoio do livre pensar.
Este, certamente, poderá ser o caminho reto e
seguro para o ser espírita, Inter existente e possuidor de todos os seus
atributos eternos e imutáveis. Bibliografia:
KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos; PIRES, J.H. O Centro Espírita, Introdução
à Filosofia Espírita.
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