ENTREVISTA DA 2ª
Diretor da OMS diz que o mercado está mais preocupado em atender doenças que
preocupam países ricos
Globalização espalha doenças, diz médico
LEONARDO CRUZ
DE LONDRES
Seis
doenças infecciosas matam, por ano, 13 milhões de pessoas no mundo, o
equivalente a cerca de 25% das mortes do planeta. A maioria dos mortos por
Aids, malária, tuberculose, pneumonia, sarampo e diarreia é formada por jovens,
de países em desenvolvimento. Mas esse quadro também afeta os desenvolvidos -na
Europa, países como o Reino Unido e a Alemanha têm enfrentado surtos de
tuberculose, moléstia considerada sob controle a partir do desenvolvimento da
estreptomicina, nos anos 40.
Para
David Heymann, 54, diretor para doenças transmissíveis da OMS (Organização
Mundial da Saúde), essas mortes poderiam ser evitadas se os remédios
disponíveis fossem usados de forma "mais ampla" nos países pobres e
"mais sábia" nas regiões industrializadas.
"Nos
países em desenvolvimento, a distribuição das drogas ainda é precária, muitos
não recebem os medicamentos. E nos industrializados, muitos remédios foram
usados em excesso, fazendo com que vírus e bactérias criassem resistência aos
medicamentos", afirma Heymann, médico norte-americano que desde os anos 70
estuda as doenças infecciosas.
Na
pesquisa de avaliação de Heymann, a globalização potencializou a velocidade de
transmissão dessas moléstias. "As doenças hoje viajam de avião e são
transportadas muito rapidamente em passageiros, comida ou animais", afirma.
Heymann
também acusa a indústria farmacêutica de ter menosprezado as pesquisas para
tratamento de doenças transmissíveis para desenvolver apenas remédios contra
males não-transmissíveis, como câncer e mal de Alzheimer. A seguir, leia trechos da entrevista que o diretor da OMS concedeu à Folha, por
telefone, de seu escritório em Genebra, na Suíça.
Folha - Em um relatório da OMS, o sr.
escreveu que a morte anual de 13 milhões de pessoas por doenças infecciosas poderia
ser evitada. De que forma? David
Heymann - Para doenças como o
sarampo, que mata cerca de 900 mil crianças por ano, existem vacinas que poderiam
ser usadas para prevenção. Para doenças como Aids, pneumonia e tuberculose, há
drogas disponíveis para cura ou para prolongar a vida do doente.
Mas
nesse ponto surgem dois problemas. Primeiro, a distribuição desses medicamentos
e vacinas em países em desenvolvimento ainda é muito precária, e muitos que
precisam do remédio não conseguem obtê-lo. Segundo, essas drogas estão perdendo
efeito, já que os micróbios estão desenvolvendo resistência a essas substâncias.
Folha - E por que isso está
acontecendo? Heymann
- Isso ocorre porque as
drogas foram usadas de forma incorreta. Houve utilização em excesso, muitas
vezes desnecessária, em países industrializados. Pessoas que efetivamente não
precisavam dos remédios foram medicadas. Em países em desenvolvimento, ocorreu
o contrário, os antibióticos foram usados em quantidade inferior ao
recomendável, muitas vezes por falta de remédio, mesmo. Tudo isso contribuiu
para que vírus e bactérias criassem resistência às drogas.
Folha - O que pode ser feito para maximizar
o efeito desses remédios?
Heymann - Os antibióticos devem
ser usados de forma mais sábia e mais ampla. Devem ser usados com mais
intensidade em países em desenvolvimento e na quantidade certa para combater a
doença. Em países industrializados, o uso só deve ocorrer quando realmente
necessário.
Folha - Qual o impacto da globalização
para a saúde mundial?
Heymann - É bastante claro:
quando aparece um surto de uma doença em um país, por mais distante que esse
país pareça, todos devem ficar preocupados, por causa da globalização. Hoje,
com o intenso tráfego aéreo internacional e com o constante deslocamento das
pessoas, doenças infecciosas como tuberculose, pneumonia e malária podem se
espalhar muito rapidamente. Atualmente, existem muito mais casos de tuberculose
nos países industrializados do que há 20 anos.
No
ano passado, cerca de 30 triatletas que participaram de um prova na Malásia
voltaram para seus países com leptospirose, mas só descobriram que estavam
doentes quando chegaram em casa. É um típico caso em que centenas de pessoas
poderiam ter sido contaminadas.
Folha - Mas o que fazer para minimizar
esse efeito?
Heymann - A única coisa que
pode ser feita é estar alerta para evitar que novos surtos de doenças se
espalhem. Países com sistemas de saúde eficientes conseguem identificar
rapidamente uma epidemia e agem para controlá-la. Em países em desenvolvimento,
sem uma boa infraestrutura, isso já é mais difícil. Folha - No passado recente, doenças como tuberculose eram consideradas
sob controle, já que podem ser curadas com medicamentos. Mas hoje há surtos
dessas doenças mesmo em países desenvolvidos.
O que está acontecendo?
Heymann - Essas doenças sempre
estiveram presentes entre os países pobres, onde o acesso aos remédios é mais
difícil. Mas, nos países industrializados, houve uma redução nos investimentos
para desenvolver remédios contra doenças infecciosas. Esses países acharam que esse tipo de problema havia sido resolvido nos anos 50
e 60, quando surgiram medicamentos eficazes, e vacinas foram desenvolvidas. Na
verdade, essa segurança era falsa, e agora essas doenças voltaram com força.
Folha - Então o sr. acredita que a
indústria farmacêutica de países desenvolvidos deixou de lado as pesquisas relacionadas
a doenças infecciosas?
Heymann - Sim, é claro. Entre
as doenças infecciosas que mais matam, só existe vacina efetiva contra o
sarampo. Não houve investimento efetivo para a criação de uma vacina contra
tuberculose ou pneumonia, e novos medicamentos contra essas doenças são cada
vez mais raros.
Folha - E por que isso ocorre?
Heymann - Porque o mercado está
mais interessado nos países industrializados, onde as doenças que mais
preocupam são câncer, mal de Alzheimer e doenças do coração. Essa política do
mercado é muito evidente. Para que esse cenário seja mudado, é preciso que
governos, indústrias e sociedade trabalhem juntos, tenham os mesmos objetivos.
Folha - É viável pensar em uma ação
global contra essas doenças?
Heymann - Sim. Nós entendemos
que o mundo é uma única comunidade. Se um país industrializado quer ter certeza
de que não será ameaçado por uma doença, ele tem de ajudar a combater essa
doença nos países em desenvolvimento, doando remédios, ajudando com infraestrutura.
Para o país pobre, derrotar essas doenças é questão básica. Ou seja, está tudo
interligado.
Folha - Qual o custo dessas doenças
para a economia mundial?
Heymann - É muito expressivo.
São milhões e milhões de dólares perdidos anualmente por causa dessas doenças.
Um doente de tuberculose, por exemplo, chega a ficar três meses afastado do
trabalho e tem despesas altas com hospital e medicamentos.
Folha - Quais as propostas da OMS para
combater doenças em países pobres?
Heymann - Nós acreditamos em
uma ampla política de parcerias. Os governos de países em desenvolvimento devem
se engajar no combate às doenças. Esses governos devem ter apoio de países
industrializados, que fornecem recursos para os programas de combate às
doenças. E as indústrias devem fornecer os medicamentos a preços acessíveis.
Folha - Um exemplo concreto?
Heymann - Há 22 países no mundo
com alto índice de tuberculose. No ano passado, em Amsterdã (Holanda),
ministros da Saúde e do Planejamento de países pobres e desenvolvidos se
reuniram e assinaram um acordo para investir no combate à doença. Depois disso,
a OMS e representantes desses 22 países se reuniram no Cairo (Egito) e
traçaram, com o apoio de ONGs, planos de ação efetivos contra a tuberculose.
Folha - E há razão para ser otimista
atualmente em relação ao combate de doenças?
Heymann - Atualmente, eu
acredito que governos, empresas e ONGs já conseguem compreender a importância
das parcerias para combater doenças. E esse é um passo muito significativo.
Muitos países parecem ter percebido que o desenvolvimento econômico está
relacionado à erradicação dessas doenças da pobreza. Um
país sem população saudável não consegue se desenvolver economicamente.