ANA JÚLIA RIBEIRO - COM DIREITO A VOZ
COSTUMA-SE DIZER QUE, há dois Brasis em um. Em 1974, o economista Edmar Bach cunhou o termo Belíndia – uma Bélgica
(pequena e rica) cercada por uma Índia (grande e pobre) por todos os lados. A
imagem ilustra a profunda desigualdade social do país. De lá para cá, as coisas
mudaram um pouco, mas o Brasil continua vergonhosamente desigual.
Há também o Brasil do passado e o Brasil do futuro. Curiosamente, são os
arquitetos da Ponte para o Futuro os
representantes do passado. Eles seguem empenhados em resolver os problemas
econômicos da Belíndia cortando verbas e direitos da
Índia e mantendo os privilégios da Bélgica. Os belgas tropicais se
encontram em suntuosos jantares para
decidir o futuro dos indianos brasileiros.
Nas últimas semanas, muitos fatos confirmam essa direção. Temos a
proposta do congelamento em investimentos no serviço público e, ao mesmo tempo,
um reajuste salarial para o Poder Judiciário e
a Polícia Federal. Isso
para não falar da decisão do STF de autorizar o desconto nos salários servidores
públicos em greve, ou dos menores de idade no Tocantins que foram ilegalmente
algemados e presos por protestarem por mais investimentos na
educação.
Estudantes
secundaristas de todo o país ocupam hoje 1.177
escolas contra a reforma do ensino médio e a PEC 241 –
que congela os investimentos por 20 anos, inclusive na educação. Mas,
inacreditavelmente, essa não é a principal pauta da imprensa brasileira
atualmente.
Duas declarações bastante simbólicas do Brasil do passado e do futuro me
chamaram a atenção essa semana. Alexandre Garcia, 76 anos, comentarista da
Globo, do Estadão e ex-porta-voz do regime militar, desancou os estudantes que protestam contra a
reforma escolar e lembrou com emoção dos anos de chumbo. Sua fala também é
bastante representativa do desdém com que a mídia tem tratado os estudantes que
protestam pela melhoria do ensino.
Ana Julia, 16 anos, estudante secundarista, deu uma aula de cidadania e política para deputados
paranaenses na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná. Com a voz embargada e vestindo o uniforme do
colégio, a garota contrariou quem esperava uma fala infantil, cheia de clichês
revolucionários e sensos comuns. O vídeo do seu discurso viralizou nas redes
sociais e conseguiu finalmente colocar as ocupações em destaque no noticiário.
Para cada afirmação insana da coluna de Garcia, publicada na
Rádio Metrópole na última quarta-feira, é possível
responder com um trecho do discurso de Ana Julia. Vejamos alguns diálogos
possíveis:
Ao contrário do que Garcia afirmou com convicção, os estudantes querem,
sim, uma reforma no ensino médio.
Alexandre Garcia: “Gente,
estudantes do ensino médio estão contra a reforma do ensino médio. Ou seja,
eles estão satisfeitos com os resultados medíocres do ensino médio brasileiro. ”
Ana Júlia: “A gente sabe que a gente precisa de uma reforma do ensino médio. Não só
no ensino médio como no sistema educacional como um todo. A reforma da educação
é prioritária, só que a gente precisa de uma reforma que tenha sido debatida.
Uma reforma que tenha sido conversada. Uma reforma que precisa ser feita pelos
profissionais da área de educação. É essa reforma que a gente precisa. A medida
provisória tem, sim, seus lados positivos. Só que ela tem muitas falhas. Se
colocarmos ela com essas falhas, a gente vai estar fadado ao fracasso. O Brasil
estará fadado ao fracasso. ”
Diferente do que prega Garcia, Ana Julia e seus colegas não estão
satisfeitos com a mediocridade do ensino atual e brigam exatamente contra isso.
A estudante ressalta o problema do analfabetismo funcional, que impede que os
jovens ouçam Alexandre Garcia com senso crítico, por exemplo.
Alexandre Garcia: “Jovens
se satisfazendo com a mediocridade é uma coisa incrível. Aí fazem ocupação de
escola, não tem aula, deve ser por masoquismo, para aprenderem ainda menos.
Essa proposta vem lá do governo Dilma e é necessária para o país”.
Ana Júlia: “Somos
um movimento que se preocupa com as gerações futuras. Um movimento que se
preocupa com a sociedade, se preocupa com o futuro do país. Que futuro o Brasil
vai ter se não nos preocuparmos com uma geração de pessoas que vão desenvolver
senso crítico? De pessoas que têm que ter um senso crítico político. De pessoas
que não podem simplesmente ler um negócio e simplesmente acreditar naquilo.
A gente tem que saber o que está lendo. Nós temos que ser contra o
analfabetismo funcional que é um grande problema do Brasil hoje. E é por isso
que nós estamos aqui. É por isso que nós ocupamos as nossas escolas. É por isso
que a gente levanta a bandeira da educação. É por isso que a gente é contra a
medida provisória. ”
Malandramente, o jornalista nada inocente associa a tragédia às
ocupações. A tentativa de transformar os estudantes que protestam por melhor
educação em vagabundos drogados é vergonhosa.
Alexandre Garcia: Agora acontece até um assassinato numa escola em Curitiba. Um
assassinato à faca. Quer dizer, tem estudante entrando na ocupação levando
arma. E estavam lá os dois mortos [Nota: apenas um foi morto] envolvidos com
droga também. Um com 16 anos e o autor com 17 anos. Tudo por uma manifestação
pelo ensino. Que futuro, hein!
Ana Júlia: Nós que ocupamos as escolas não somos vagabundos como dizem aqui, como a sociedade lá fora diz. Nós estamos lá por
ideais. Nós lutamos por eles. Nós acreditamos neles. Eu convido vocês a irem
nas ocupações para ver o nosso desgaste psicológico. Para ver que não é fácil
estar lá e que a gente vai continuar lutando. A gente vai continuar lutando
porque a gente acredita nisso. A gente vai continuar lutando porque está em
busca de
conhecimento e não vai parar de ir atrás do conhecimento.
Alexandre Garcia: Um último registro: a morte do capitão do Tri
no México, Carlos Alberto. Foi a melhor equipe que o Brasil já teve e marcou o
início do entusiasmo que empurrou o Brasil para 3 anos de crescimento médio de
11,2% ao ano – crescimento
chinês – com o entusiasmo de todos. Inclusive eu,
estudante na época, como todo mundo, tinha no carro o plástico: ‘ame-o ou
deixe-o’, que era um recado para os terroristas, entre os quais estava a Dona
Dilma. ”
Ana Júlia: O
movimento estudantil nos trouxe um conhecimento muito maior sobre política e
cidadania do que durante todo o tempo em que ficamos sentados e enfileirados em
aulas padrões. Apesar de toda essas
ridicularizarão, essa desmoralização. Apesar de sermos ofendidos. Apesar dos
problemas que vamos enfrentar, a gente ainda consegue ter a presença da
felicidade, porque nós deixamos de ser meros adolescente e nos tornamos
cidadãos comprometidos com o desenvolvimento da educação. ”
Não bastou usar a morte de um estudante para tentar deslegitimar os
protestos dos estudantes. Garcia deu um jeitinho também de usar o falecimento
de Carlos Alberto Torres como escada para enaltecer a ditadura militar – da qual
participou entusiasticamente, sempre muito próximo dos ditadores. Aproveitou também para enaltecer o
“crescimento chinês” da Belíndia durante o regime militar e chamar de
terrorista quem lutou contra o regime assassino, como fez a estudante Dilma.
O colunista vai além e se vangloria de ter apoiado a ditadura quando
estudante ao carregar em seu carro o lema “Brasil, ame-o ou
deixe-o”. A Globo
já pediu desculpas por ter apoiado a ditadura, mas ainda conta com funcionários que insistem
em dourar esse trágico período do país.
Enquanto nosso futuro não engole a Ponte para o Futuro, nosso passado
está louco para reviver 64. Mas Ana Júlia e sua geração não estão para
brincadeira. Estão para a luta!
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